VOLTAS NA QUADRA
Fabrício Carpinejar
Ninguém lê por obrigação. Ninguém vai procurar o que o autor pensa. Toda leitura é feita pela vaidade de se descobrir ou de se aniquilar. Sim, parece estranho, mas muita gente procura nas obras argumentos e pretextos para o seu pessimismo. O que seria da adolescência sem uma frase de Nietzsche para assustar definitivamente os pais? Da mesma forma, há outros leitores que procuram um livro como quem vai ao terapeuta. O terapeuta permanece calado toda consulta, o leitor é que fala. Não difere muito a situação. Não existe livro puro. Sempre que alguém folheia o recinto, já despeja sua vida de imediato. A facilidade também seduz. O livro ideal é aquele que diz tudo no título, a exemplo de "Como atingir o orgasmo em três toques", dispensando maiores compromissos. É mais fácil seguir as instruções de um livro de auto-ajuda com suas dicas maleáveis do que os dez mandamentos (não cobiçar a mulher ou o livro do próximo é praticamente impossível!). Para os esportistas literários, a leitura não é um destino, mas um desejo. Exercita-se os músculos da memória. É como um cooper contra o esquecimento. Três páginas lidas equivalem a uma volta na quadra. Queima-se alguma coisa, não sei se são as calorias. Imaginamos o enredo, os personagens, os versos com nossa cara. Personificamos a trama. Na verdade, o autor não existe, nem precisava existir. Em um poema com o título "Escrito num livro abandonado em viagem", Fernando Pessoa, poeta português dos maiores, se auto-exclui: "Fui, como ervas, e não me arrancaram." Afora toda piedade que emana de tal afirmação, ele tem razão ao comparar o escritor com a discrição das ervas. Planta tão modesta que não serve para ser jogada fora. Fica fazendo fundo na horta, no quintal ou nas beiras e eiras da calçada. Para quem acredita em libertação pela leitura, deve pensar melhor no sentido daquele lugar comum: o livro me prendeu, não conseguia parar. Livro prende, permanecemos seus reféns o resto dos dias. Descobre-se, enfim, que a sabedoria não vem da erudição, do conhecimento acumulado, da decoreba e do catálogo telefônico de citações. Sabedoria acontece quando coincidimos o que lemos com o que vivemos.
(Texto publicado no libreto Leituras Obrigatórias, da Editora Unisinos.)